sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Intolerância no Brasil

Movidos a Ódio

Sem ideologia clara e com um discurso confuso, muitos jovens aderem a grupos que têm como objetivos centrais a violência e a intolerância

Léo Gerchmann, Leonardo Fuhrmann e Neldson Marcolin

O professor universitário de filosofia Alessandro Faria Araújo, de 39 anos, foi espancado em fevereiro por um grupo de dez pessoas, entre elas duas mulheres, na esquina da Rua da Consolação com a Alameda Jaú, nos Jardins, área nobre da capital paulista e com grande concentração de bares freqüentados pela comunidade GLBTT (Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais). Homossexual assumido, ele é mais uma das vítimas da homofobia. A gangue que o agrediu é conhecida por usar roupas pretas e já foi identificada pela polícia. Curiosamente, os agressores se apresentam como punks, uma denominação usada desde o início do movimento, nos anos 70, para grupos anarquistas, que em tese defenderiam a liberalidade nos costumes. Com relação especificamente ao movimento GLBTT, é importante lembrar que a banda "New York Dolls", uma das precursoras do punk, esteve também entre as primeiras a usar um visual andrógeno.

Uma agressão como a de que Araújo foi vítima é mais ligada ideologicamente a grupos considerados rivais dos punks, como skinheads - de influência neonazista e defensores do que chamam "supremacia branca" - e carecas - que se diferenciam do grupo anterior por não ter em seu discurso a discriminação contra negros, nordestinos e imigrantes. Afinados com o discurso da extrema-direita, os dois grupos têm em comum o discurso de ódio contra judeus, homossexuais, transexuais e travestis.

O professor de filosofia estava acompanhado de três amigos que conseguiram fugir da agressão, se escondendo em um bar. Araújo foi derrubado e agredido a socos e pontapés, que lhe provocaram uma fratura no maxilar e ferimentos nas costelas.

Se por um lado a falta de uma ideologia clara para justificar uma possível agressão contra esses grupos apontados como preferenciais dos crimes de intolerância preocupa, porque aumenta o número de potencial de integrantes de gangues violentas, por outro é visto com certo alívio por pessoas como o rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista. "Não existe no Brasil um problema de anti-semitismo como tem na Europa e mesmo em alguns países da América Latina. O que acontece são atos isolados", opina.

No começo do ano, uma sinagoga de Santo André, no ABC Paulista, foi alvo de pichações anti-semitas. Em Campinas, no interior do Estado, o ataque foi no ano passado, com pedras e coquetéis molotov. Os agressores escreveram na calçada da sinagoga a expressão "Líbano, o verdadeiro holocausto", em referência ao conflito entre árabes e judeus no Oriente Médio.

O caso mais grave contra judeus aconteceu no ano anterior, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Na madrugada do dia 8 de maio de 2005 -coincidentemente com a data em que se comemora o "Dia da Vitória", na 2a Guerra - três jovens, identificados como judeus por estarem usando kipá, foram agredidos em frente ao bar Pingüim, localizado na Rua Lima e Silva, bairro Cidade Baixa (região central de Porto Alegre), por volta de 2h30.

O ataque foi tão violento que um dos jovens, que não é judeu, mas afirma o desejo de converter-se, foi agredido a facadas que resultaram em perfuração do baço, rim e pulmão, com ele permanecendo em risco de morte durante vários dias. O segundo jovem, este sim judeu, foi atingido por duas facadas, sendo uma no baço e outra no abdômen. Também de origem judia, o terceiro jovem recebeu socos e pontapés em diversas partes do corpo.

No inquérito policial promovido pelo Departamento de Polícia Metropolitana, quatro rapazes anteriormente reconhecidos como integrantes de um grupo de skinheads foram identificados como autores da agressão. O processo de identificação foi acompanhado pelos advogados dos suspeitos e integrantes do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que atestam sua lisura. Os quatro skinheads foram denunciados pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul como autores de tentativa de homicídio qualificado - por motivo torpe (discriminação religiosa), meio cruel, utilização de recurso que dificultou a defesa das vítimas -, e formação de bando ou quadrilha.

Os quatro denunciados foram interrogados pela Juíza Titular da 2a Vara do Júri, quando negaram ter estado no local onde os crimes ocorreram. No dia 25 de agosto de 2005, antes da audiência em que seriam ouvidas as vítimas, vieram aos autos do processo novas provas produzidas pelo diretor do Departamento de Polícia Metropolitana, delegado Paulo César Jardim, razão pela qual a juíza suspendeu o andamento do processo até que se completassem as novas diligências policiais. Nessa data, os quatro acusados, que ficaram 105 dias presos no Presídio Central de Porto Alegre, obtiveram liberdade provisória.

Como resultado das novas diligências promovidas pela polícia, o Ministério Público aditou à denúncia a inclusão de outros dez jovens integrantes de um grupo chamado Carecas do Brasil. Tal grupo, segundo o Ministério Público, participou do episódio, impedindo que pessoas que transitavam pelo local socorressem as vítimas. Nos dias quatro e cinco de janeiro de 2006, os quatro primeiros acusados, mantidos no processo, foram novamente interrogados, sustentando as versões anteriores, de que não estariam no local dos crimes, no dia e hora em que ocorreram as tentativas de homicídio. Ainda na mesma ocasião, foram ouvidos os dez acusados incluídos no processo, que admitiram estar no local dos crimes no dia e hora indicados pela acusação, mas negaram terem concorrido para a materialização dos delitos. Alguns deles reconheceram serem ex-punks e nacionalistas, usando a cabeça raspada, bota de combate e trajando roupas próprias desse grupo.

Em depoimentos prestados na polícia, onze testemunhas e duas das três vítimas reconheceram os quatro primeiros acusados como sendo os agressores. Na visão do Ministério Público, todos os acusados - integrantes dos dois grupos (Skinheads e Carecas do Brasil) - participaram das tentativas de homicídio descritas na denúncia e, em maior ou menor grau, concorreram nos demais atos criminosos praticados pelos autores. Entre os acusados há três mulheres integrantes do bando Carecas do Brasil que se não participaram das agressões às vítimas contribuíram para os crimes, incentivando seus namorados e amigos ao delito.

Símbolo da homofobia

No dia 6 de fevereiro de 2000, Edson Neris da Silva foi espancado e morto quando passeava de mãos dadas com o namorado, Dario Pereira Netto, na Praça da República, em São Paulo. Os agressores faziam parte dos Carecas do ABC, gangue que discrimina com violência homossexuais, judeus e drogados. Embora o preconceito e a violência não tenham sido banidos desde a morte de Neris, as ações e busca de soluções contra esse tipo de crime se intensificaram nos últimos anos. Ainda assim, o caso ocorrido há sete anos não terminou. Nove, dos 18 acusados, aguardam julgamento.

A morte de Edson Neris teve grande repercussão e mobilização da sociedade por duas razões. A primeira foi o motivo absolutamente fútil. "Não houve nenhuma provocação por parte da vítima e a violência foi praticada de modo completamente aleatório", diz Marcelo Milani, o promotor que apresentou a denúncia contra os agressores. A segunda razão é que foi a primeira vez que houve condenação de um crime motivado pela intolerância, no caso, sexual.

O crime

Tudo aconteceu durante a madrugada na Praça da República, centro de São Paulo, tradicional ponto de encontro de homossexuais da cidade. Edson, de 35 anos, adestrador de cães, andava de mãos dadas conversando com Dario, de 34, operador de telemarketing. Um grupo de 18 jovens entre 19 e 33 anos com a cabeça raspada, vestindo roupas pretas ou de camuflagem, coturnos e pelo menos um soco inglês surpreendeu os dois e começou a agredi-los. Dario recebeu alguns socos, mas conseguiu livrar-se e correr em direção à estação do metrô, onde pediu ajuda dos seguranças. Edson caiu no chão e foi massacrado por socos e chutes. De acordo com um integrante da própria gangue - que posteriormente contou tudo em detalhes para ter a pena reduzida - mesmo quando já estava imóvel no chão ele continuou a ser chutado, inclusive na cabeça. Socorrido, morreu no hospital.

O padrasto de Edson, João Gabriel Raulino, ajudou a vestir o enteado para o enterro. Em entrevista à revista Época, de 14 de fevereiro de 2000, Raulino contou o estado em que se encontrava o corpo: "A parte de trás da cabeça estava partida em pedacinhos, como se tivesse pequenas rachaduras. Também tinha furos. As únicas partes inteiras eram as pernas e os braços". Testemunhas, como mendigos, transeuntes e duas moradoras da região, assistiram ao massacre e indicaram aos policiais a direção que o grupo tomou. A polícia deteve os agressores, duas mulheres entre eles, no bar Recanto dos Amigos, no Bixiga. Todos foram autuados em flagrante por homicídio e formação de quadrilha.

O grupo se denominava Carecas do ABC, mas podia facilmente ser confundido com os Carecas do Subúrbio. Todos se dizem nacionalistas e detestam homossexuais, judeus e drogados. Defendem a violência como meio de expressão, de defesa ou simplesmente como forma de coação. Os Carecas do ABC vêm das cidades que formam o ABCD paulista, como Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano e Diadema, e os do Subúrbio são jovens da periferia de São Paulo. A inspiração dessas gangues vem dos skinheads europeus. Na Europa, o movimento também é formado por jovens pobres que reivindicam melhores condições sociais e mais empregos, são violentos, mas têm uma cara declaradamente neonazista, negam a morte de milhões de judeus na Segunda Grande Guerra e lutam contra a presença de imigrantes. No Brasil, as gangues são formadas basicamente por operários ou filhos de operários e aceitam mulheres em suas fileiras. Há também neonazistas no Brasil reunidos em torno de grupos como o White Power (poder branco), mas aqui eles são oriundos da classe média e mantém contato com grupos de extrema direita de outros países.

Julgamento

Quando foram presos, os Carecas do ABC negaram o crime mesmo com várias testemunhas contra eles - e mantiveram a estratégia diante do juiz. O promotor Marcelo Milani não hesitou em pedir julgamento por homicídio triplamente qualificado (meio torpe, cruel e impossibilidade de defesa da vítima) e tentativa de homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e recurso que dificultou a defesa de Dario). Mas obteve sucesso apenas parcial. "Hoje, passados sete anos do crime, há réus que não foram a julgamento", lamenta Milani. "E existe um recurso de abril de 2000 que não voltou do Tribunal de Justiça até hoje."

Foram julgados 9, dos 18 acusados. Quatro foram condenados e cumprem pena de 19 anos: Vanderlei Cardoso de Sá, Juliano Filipini Sabino, Henrique Velasco e José Nilson Pereira da Silva. Davi Alves dos Santos Junior e Marcelo Pereira Martins foram julgados, condenados, mas recorreram e estão soltos. Ficaram apenas algum tempo presos. Roberto Fernando Gros Dias foi julgado e condenado por formação de quadrilha, cumpriu dois anos de prisão preventiva e está solto. Regina Saran Velasco foi absolvida. Jorge da Conceição Soler foi condenado a sete anos, tornou-se réu colaborador e está solto. Os demais aguardam julgamento. São eles: Edilene Aparecida Pereira Bezerra, Washington Luiz Dias de Oliveira, Fernando Azadinho dos Santos, Luiz Felipe Marcondes Machado, Luciano Pereira Teixeira Junior, Adriano Sobral Rodrigues, Edauro Pereira, André de Souza Silva e Onilmar Rocha Queiroz.

Marcelo Milani não tem esperança de condenar mais nenhum acusado pelo crime. "Os que não foram julgados até agora respondem pelo crime de formação de quadrilha, que já está prescrito", explica. O promotor culpa a extrema lentidão da Justiça e diz não entender por que ainda há processos parados no Tribunal. Milton Bonelli, defensor de Jorge da Conceição Soler e Luiz Felipe Marcondes Machado, confirma a prescrição da pena e critica o comportamento dos advogados durante o julgamento. "Eram muitos réus com advogados diferentes, a maioria deles era inexperiente e não soube atuar no caso", observa. "Negar a agressão e o crime o tempo todo não foi inteligente." Com 66 anos de idade, 34 de carreira e 28 de Tribunal do Júri, Bonelli acha que, se tivesse ficado claro que os acusados queriam agredir sem a intenção de matar, talvez todos tivessem pegado apenas quatro anos e já estariam livres.

Delação premiada

Jorge Soler, um de seus clientes, foi condenado a 3 anos e 4 meses em regime aberto. Na prática, teve a pena reduzida porque colaborou. "Apelei para delação premiada e ele ficou no serviço de proteção à testemunha", conta o advogado. De acordo com ele, quando se viu preso, Soler decidiu falar e contar quem teve maior ou menor participação na agressão. Para a família do acusado, o episódio todo foi um verdadeiro desastre. Depois de solto, ele teve de se esconder dos carecas, que queriam acertar contas por ter entregado os companheiros. A família mudou para o interior do Estado e hoje Soler, com 22 anos, trabalha com o pai em um comércio de madeiras. "Este ano ele vai casar não quer nem ouvir falar em skinheads."

De Luiz Felipe, Bonelli não teve mais notícias. Embora acusado por formação de quadrilha, ainda não foi julgado e o caso não terá mais conseqüências graças à prescrição do crime. Ele namorava uma moça com quem tinha um filho e cuja família contratou o advogado. Como se separou, Bonelli perdeu o contato. "O engraçado é que ele trabalhava numa gráfica e gostava mesmo era de usar terno e gravata e não coturnos."

O advogado acha que a morte de Edson Neris foi uma fatalidade para o bando. "Naquela mesma noite em que mataram o Edson o mesmo grupo havia espancado outras duas pessoas", diz. Ele acredita firmemente que os réus defendidos por ele não tinham ideologia nenhuma. "Apenas três deles - Vanderlei de Sá, Juliano Sabino e Henrique Velasco - são nacionalistas por convicção e odeiam homossexuais, judeus e drogados", afirma. "Os demais não passavam de seguidores bobos."

Bonelli também não acredita que esse movimento tenha diminuído desde a morte de Edson Neris. "Ocorre quase sempre de os agredidos não denunciarem os ataques porque também são discriminados pelos policiais." Quando ocorre um caso rumoroso como o de 2000 há um refluxo de ações discriminatórias, que voltam a ocorrer depois que a poeira baixa. Toni Reis, presidente da Associação de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (AGLBT), dá números que corroboram a tese de Bonelli. "Continuamos com um número alto de homossexuais assassinados, foram 125 mortes anuais em média desde o ano 2000, segundo o Grupo Gay da Bahia", afirma Reis.

O que melhorou foi o cenário da promoção dos direitos GLBT. Em 2004 foi lançado o programa Brasil Sem Homofobia, com 53 ações de combate a homofobia envolvendo 10 ministérios e órgãos federais, principalmente na área da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e dos Ministérios da Cultura, da Educação e da Saúde. "Mas no Congresso Nacional não tivemos ainda a aprovação da lei que visa tipificar e punir a discriminação por orientação sexual, embora o projeto de lei já tenha sido aprovado na Câmara dos Deputados e atualmente esteja na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal."

Os ataques de grupos como os carecas ou skinheads ocorrem mais nos Estados do Sul e Sudeste do país. Em 2005, houve várias agressões contra gays em Curitiba. "Atuamos muito proximamente da Secretaria Estadual de Segurança Pública e o resultado foi a prisão de 13 skinheads", conta Reis. "Nesse caso, não se trata de uma questão de conscientização, mas sim de repressão."

Transfobia

A travesti Kika Medina, de 47 anos, foi agredida a pauladas no mês passado, em São José dos Campos, no interior paulista. Um homem desceu de uma moto e passou a agredi-la, enquanto o outro continuava em cima da moto ligada. Kika tentou se proteger com os braços e acabou tendo um deslocamento em um dos ombros, além de outros ferimentos. Os rapazes fugiram e ninguém conseguiu anotar a placa da moto. Ela, que vive da prostituição nas ruas e é militante do movimento GLBTT, denunciou o caso à polícia e espera a identificação e punição a seus agressores.

Assim, o caso dela será uma exceção. A polícia e mesmo as entidades de defesa dos direitos da comunidade GLBTT recebem poucas denúncias de atos de violência contra travestis e transexuais, mesmo com levantamentos estatísticos mostrando que os casos de violência contra elas são maiores proporcionalmente do que contra os homossexuais.

Na Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo de 2005, uma pesquisa feita pela associação que organiza o evento mostrou que 20% dos homens homossexuais declaram ter sido vítimas de agressão por sua orientação sexual. Entre travestis e transexuais, o percentual foi de 60%, o maior detectado pelo levantamento. A transexual Fernanda Morais, do Instituto Afrodite, diz que o resultado demonstra que a maioria dos travestis e transexuais evitam denunciar o caso, mesmo para as entidades. "Quando recebemos uma denúncia, a encaminhamos para a polícia", diz. Para ela, os travestis evitam denunciar os casos porque dizem que também são vítimas de discriminação dentro dos organismos policiais. "Como as que são profissionais do sexo trabalham geralmente em um ponto fixo, elas temem ser alvo de retaliação caso denunciem agressores, principalmente quando o caso envolve violência policial", explica.

A transexual Alessandra Saraiva, da secretaria de Travestis e Transexuais da Associação da Parada, diz que é preciso convencê-las que podem acreditar no sistema, para depois receber as denúncias dos casos de violência. "A marginalização das travestis e transexuais começa muitas vezes dentro da própria família e permeia as atividades do dia-a-dia. Eu, por exemplo, mesmo tendo renda para alugar um apartamento, não conseguia por ser transexual. Cheguei a ser recusada em 40 tentativas. Só consegui porque meu pai fez a locação para mim, sem que eu fosse identificada", contou.

O assessor jurídico da Coordenadoria dos Assuntos da Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo, Dimitri Sales, também considera travestis e transexuais o grupo mais vulnerável entre os atendidos pela coordenadoria. "Até mesmo pela maior visibilidade, pela facilidade de identificá-las, elas se tornam um alvo preferencial", diz.

Polícia que escuta

Depois de as entidades ligadas ao movimento GLBTT denunciarem os casos de trans e homofobia recentes, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Ronaldo Bretas Marzagão, os recebeu para uma reunião. Foi o começo de uma série de conversas entre essas entidades e representantes das polícias civil e militar.

Dias depois, as entidades e a coordenadoria da prefeitura se reuniram com 80 policiais militares que trabalham na região central da capital paulista. "Houve bastante discussão, mas por isso mesmo acredito que foi enriquecedor para os dois lados, porque reduziu preconceitos e a incompreensão", afirma Sales. Ele conta que, com a divulgação dessas conversas, já houve delegados e comandantes de batalhões que os procuraram para aprimorar o diálogo.

A notícia publicada pelo site da Secretaria também destaca que a reunião, apesar de proveitosa, não foi fácil. Em uma sala do quartel, os 80 oficiais da polícia Militar ouviram ininterruptamente a apresentação dos representantes dos GLBTTs. A exposição do grupo gerou um desconforto inicial aos PMs, que também apresentaram suas visões da relação entre a Polícia e o grupo. Primeiro a se pronunciar, o capitão George disse que os policiais não são treinados para ignorar os GLBTTs, mas que não é possível aceitar um grupo de travestis que, ao se prostituir, se exibe nas ruas com todo o corpo à mostra. "Cidadania não é só obrigação do Estado, mas do cidadão", disse ele.

Aberto o debate, a discussão manteve-se no âmbito da crítica. Enquanto os policiais apontavam os atos ilícitos dos GLBTTs, os seus representantes mostravam os erros da polícia. A tenente Karin destacou a necessidade de que a reunião tivesse um resultado proveitoso, segundo a notícia divulgada pela secretaria "Não adianta discutir sobre as minorias que estão erradas dos dois lados". Para ela, o importante é buscar um trabalho harmonioso. "Eu não vou gostar que tachem todos os policiais de intolerantes", disse a tenente.

A região da Avenida Doutor Vieira de Carvalho, no centro da capital, é uma das áreas onde os GLBTTs sofrem mais agressões. O trabalho no local possibilitou ao capitão Rosendo manter comunicação constante com os moradores da região. "Eu me disponho a organizar um encontro entre vocês e a associação de moradores", disse ele, segundo a mesma fonte.

Violência coletiva

Segundo Alvino Augusto de Sá, doutor em psicologia clínica e professor do Departamento de Criminologia e Medicina Legal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, para entender esse tipo de agressão é necessário observar também alguns princípios da psicologia de massa. Ele diz que a massa tende a ser mais violenta e intolerante que o indivíduo. "O conceito foi criado por Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise", afirma. Isso faz com que esses jovens reunidos sejam capazes até de matar uma pessoa em um ritual de crueldade, o que normalmente não fariam se estivessem sozinhos.

Para Sá, nos casos que não envolvem a violência de caráter ideológico, a melhor maneira de evitar a violência dos grupos é a conscientização das pessoas sobre as circunstâncias que levam à massificação, momento em que agem movidas por um ímpeto comum e não por razões próprias. Ele destaca ainda que essa massificação não acontece só quando a pessoa está no meio das demais. Mas que ela é tomada de um sentimento sempre que algo se relaciona ao tema da paixão que a une, que pode ser uma ideologia, um gosto musical ou um time de futebol. Lembra que no caso do futebol é uma coisa abstrata, pois a relação é com o símbolo e não com jogadores ou a forma de jogar da equipe.

Brigas de torcidas

A forma que o Ministério Público do Estado de São Paulo e a polícia encontraram de combater os casos de violência dentro dos estádios de futebol também mudou para entender melhor o que é o comportamento de massa. "Não tratamos os torcedores organizados como marginais, delinqüentes, como era comum em outros tempos. Chamamos os dirigentes das torcidas para conversar e hoje estamos há 11 meses sem nenhum caso grave de violência nos estádios. Entendemos que há vários fatores que provocam os tumultos", afirma o promotor criminal Paulo Sérgio de Castilho, nomeado juntamente com o colega Éder do Lago para tratar dos casos de violência entre torcidas. Ambos foram chamados para tratar do tema por decisão do procurador-geral de Justiça, Rodrigo César Rebello Pinho, quando a torcida do Corinthians provocou um tumulto no estádio do Pacaembu após o time ser eliminado pelo River Plate, da Argentina, da Copa Libertadores da América do ano passado.

Castilho lembra que setores da imprensa esportiva tratam os torcedores organizados como se todos fossem baderneiros e ridicularizam os times quando esses passam por séries de derrotas, o que provoca uma reação coletiva. Ele aponta ainda a demora do poder público em tratar de temas relacionados à violência, determinados jogadores e dirigentes que provocam torcidas adversárias e as entidades organizadoras do futebol como incitadores da violência de massa. "Há de se destacar o empenho dos atuais dirigentes do futebol paulista, mas é importante que a Federação Paulista e a Confederação Brasileira de Futebol façam sua parte, façam campeonatos bem organizados e com boa arbitragem", exemplifica.

Jogadores se explicam

Por conta dessa mudança, dois jogadores de grandes times de futebol tiveram de ir à promotoria para explicar suas atitudes. O último foi Leandro, meia-atacante do São Paulo Futebol Clube, que teve de explicar por que mandou a torcida do Santos Futebol Clube calar a boca durante o clássico entre as duas equipes no mês passado. Em 2006, foi a vez do meia Zé Roberto - do Santos, que jogou pela Seleção Brasileira - ser chamado para dar satisfações pelas provocações à torcida do Sport Club Corinthians Paulista, no jogo entre as duas equipes. Entre os dirigentes que devem ser chamados, estão o médico Marco Aurélio Cunha, do São Paulo, e o presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Antônio Roque Citadini, do Corinthians. A todos é explicado que eles podem ser até denunciados por incitação ao tumulto, uma contravenção penal.

Torcedores aliados

A mudança de comportamento vale também para os torcedores, graças à punição mais rápida para a violência dentro dos estádios, com a criação de Juizados Especiais Criminais nos dias de jogos, para analisar casos de menor complexidade. Além disso, os torcedores uniformizados foram cadastrados e separados dos demais durante os jogos. "Isso afasta os criminosos das torcidas organizadas", explica o promotor. Com essas atitudes, o Ministério Público e a polícia conseguiram transformar dirigentes de torcidas em aliados. "Eles mesmos nos avisam quais são os pontos da cidade ou da estrada onde podem acontecer confrontos e nos ajudam a monitorar as convocações para brigas pela internet", afirma Castilho. O promotor admite, no entanto, que é difícil combater as brigas entre torcedores longe dos estádios, que acabam se misturando à violência comum dos grandes centros.

Mesmo nesses casos, a resposta da polícia, do Ministério Público e da Justiça paulista tem chegado. No mês passado, um ex-presidente da torcida Independente, do São Paulo, foi condenado por participar, em fevereiro de 2003, do assassinato a pauladas de um torcedor da Sociedade Esportiva Palmeiras e de ter omitido socorro a outro torcedor do time rival ferido. Em fevereiro foi a vez de dois torcedores palmeirenses serem condenados a 14 anos de prisão pela morte de um corintiano durante um confronto entre as duas torcidas, em maio de 2004.

Identificação de líderes

O professor Antonio de Pádua Serafim, coordenador do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense da Universidade de São Paulo (USP), chama atenção para a necessidade de identificar os líderes das gangues. "Cada grupo desses tem um só líder, que muitas vezes estimula a violência mas não participa dela. Quando outros passam a se destacar, passam a ser discriminados ou afastados do grupo. Se tiverem força, podem criar uma dissidência no bando original", explica.

Além de identificar os líderes dos grupos de agressores, as entidades de defesa dos Direitos Humanos destacam a necessidade de identificar quem são os divulgadores das ideologias de intolerância e incentivadores desses atos de violência.

O jornalista Dojival Vieira, que dirige a agência de notícias Afropress, e a delegada titular da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), Margareth Barreto, se tornaram alvo de ameaças depois que neonazistas os apontaram como inimigos do movimento. Ambos tiveram suas fotos publicadas no site deles, que usa um provedor dos Estados Unidos para evitar que seus líderes sejam identificados e processados.

Vieira entrou para o index dos neonazistas por causa da sua representação no Ministério Público paulista contra o racismo na internet. "É um crime ao qual mesmo o movimento negro não deu a atenção necessária", diz. Depois que a Afropress passou a publicar notícias sobre as ações contra o racismo, ele passou a ser ameaçado de morte por telefone e em mensagens pela internet, assim como sua família.

Intolerância "do bem"

Apesar de a maioria dos casos de violência serem relacionados a idéias de violência e desrespeito ao ser humano, uma das preocupações atuais é com a intolerância de grupos que lutam por causas nobres, como a proteção ao meio ambiente e aos animais. Hélio Pimentel passou a estudar o que chama de zoonazismo. Ele começou quando a novelista Glória Perez passou a ser ameaçada por pessoas que se apresentavam como ambientalistas, na época da novela América. A causa das ameaças seria, segundo seus autores, a maneira com que ela retratava os rodeios, considerada por eles simpática aos maus tratos a animais. A partir daí, Pimentel reuniu textos retirados de sites de algumas entidades estrangeiras e notícias de jornais de credibilidade internacional que, para ele, demonstram que nesses casos, o respeito aos direitos dos animais se sobrepõe ao respeito aos direitos humanos. No caso da novelista da Rede Globo, internautas enviaram mais de 8 mil mensagens com ameaças à página dela no site de relacionamentos Orkut. Muitas das mensagens traziam imagens do corpo de sua filha, a atriz Daniella Perez, que foi assassinada em 1992.

O ambientalista Vilmar Berna diz que no exterior já existe uma preocupação com os grupos de ecoterrorismo, especialmente nos Estados Unidos. "Existem grupos lá que fazem atentados a bomba, por exemplo, contra matadouros e frigoríficos", destaca ele, lembrando que esses movimentos começaram com aquelas ações como jogar tinta em casacos de pele de modelos. Berna chegou a abordar o tema em sua publicação, a Revista do Meio Ambiente.

Para ele, no Brasil, apesar de ameaças como as feitas contra Glória Perez, não há um movimento organizado que pregue o ecoterrorismo. "Aqui, as maiores vítimas são os próprios ambientalistas. "Principalmente os que trabalham com a discussão da política ambiental, como o seringueiro Chico Mendes e a missionária Dorothy Stang, vítimas de emboscadas em 1988 e 2005, respectivamente", lembrando entre outros casos, os dois de grande repercussão internacional.

Outro exemplo está no discurso de determinados movimentos de esquerda quando tratam do conflito no Oriente Médio. "Há muito maniqueísmo na esquerda, em um assunto tão complexo como o conflito israelo-palestino. Se os palestinos têm problemas históricos, os judeus também os têm. Somos um povo que somente com a criação do Estado de Israel, no local onde estão nossas origens, passou a ter uma representação. Errávamos pelo mundo, enfrentando perseguições. Há uma causa judaica também", afirma Sergio Widder, 37, representante do Centro Simon Wiesenthal para a América Latina, cuja sede fica em Buenos Aires.

Para ele, subliminarmente, o que é pregado é a exclusão dos judeus pela destruição de Israel. "Há um roubo semântico incrível, definindo o sionismo como uma reação racista. Pessoas são contra os Estados Unidos e o neoliberalismo e aliam isso a Israel, demonizando a todos, inclusive a israelenses e judeus. Veja: demonizam os judeus. É uma ironia ocorrer tal raciocínio na esquerda. Tentam desjudaizar o holocausto. É uma infiltração do anti-semitismo nos ideais mais justos", completa Widder, ele mesmo um militante de esquerda.

O ex-deputado federal Orlando Fantazzini (PSOL), que presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, acredita que algumas pessoas na base dos movimentos de esquerda podem ter um sentimento anti-semita por conta do conflito no Oriente Médio. "Mas é um sentimento minoritário e contraria o próprio pensamento da esquerda brasileira em geral", acredita. O ex-parlamentar destaca que as críticas ao governo israelense não podem nem devem ser confundidas com ataques aos judeus. "Além de tudo, muitos judeus, inclusive dentro de Israel, são contrários à política externa do governo daquele país", opina.

Instituto Edson Neris

O assassinato bárbaro de 2000 inspirou a criação do Instituto Edson Neris (IEN) em 2003. "Trata-se de um centro que combate a homofobia e tem ações voltadas para a área do direito, na questão dos direitos humanos, da saúde e da educação, além ser uma homenagem ao Edson, de modo que ele não seja esquecido", resume Beto de Jesus, do IEN, membro da executiva da ABGLT e secretário para a América Latina e Caribe da Associação Internacional de Lésbicas e Gays (ILGA, na sigla em inglês). "Desenvolvemos um trabalho de capacitação dos operadores do direito e de coordenadores pedagógicos e professores da rede pública de educação da cidade de São Paulo, onde introduzimos a discussão de orientação sexual e identidade de gênero."

A educação é, obviamente, fator importante de conscientização e poderá ajudar a criar jovens mais esclarecidos e menos preconceituosos, mesmo quando as condições sociais são desfavoráveis. A origem dos grupos violentos que continuam atuantes no Brasil vem da década de 1970, com o movimento punk. Antes disso, já havia skinheads na Grã-Bretanha, que se tornaram particularmente ativos depois da Copa de 1966, na Inglaterra. Eles se misturaram às torcidas de futebol e passaram a ser chamados genericamente de hooligans, embora nem todo skinhead fosse um hooligan e nem todo hooligan fosse skinhead.

Grupos usam provedores americanos para divulgar preconceito

Mesmo com as leis brasileiras proibindo a divulgação dos ideais de neonazistas e outros grupos que pregam a violência e a discriminação, a internet se tornou um meio de propagação dessa ideologia dentro de nosso país. Em sites de relacionamento, há desde perfis e comunidades de grupos desorganizados até a atuação de redes de neonazistas, algumas ligadas a grupos internacionais, segundo conta o presidente da Safernet, Thiago Tavares Nunes de Oliveira. O segundo tipo de quadrilha conta ainda com sites dentro de portais norte-americanos, que usam a proteção daquele país para burlar as leis brasileiras.

A Safernet é uma ONG especializada no combate aos crimes cometidos dentro da rede mundial de computadores, que tem um serviço que recebe denúncias sobre esse tipo de atividade. Segundo Oliveira, o crime mais denunciado é o de divulgação de pornografia infantil, mas o que mais é constatado é o de incitação dos crimes de ódio. "Eles usam a internet para arregimentar novos integrantes e para marcar encontros", afirma o advogado. A entidade encaminha as denúncias procedentes para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, que trabalham para tirar essas páginas do ar e responsabilizar criminalmente seus responsáveis.

Ele lembra que dois sites neonazistas brasileiros instalados em portais estrangeiros são investigados desde 2004, sem que tenham sido retirados do ar. "Um deles chegou a ser retirado do ar quando estava em um provedor argentino, graças a um acordo de cooperação internacional. No entanto, voltou em um portal dos Estados Unidos", lembrou. Esse tipo de criminoso, segundo ele, se beneficia das leis mais brandas dos norte-americanos para delitos de opinião. "A primeira emenda da Constituição de lá garante a liberdade de expressão até nesse tipo de situação, desde que não haja prejuízos materiais ou violência física. Prejuízos psicológicos e danos morais são resolvidos na esfera cível", explica.

Para Oliveira, a demora e a burocracia nos procedimentos de cooperação internacional também beneficiam os criminosos. "Depois da Ação Civil Pública do Ministério Público Federal em São Paulo, o site de relacionamentos Orkut passou a ficar muito atento à divulgação da pornografia infantil, mas o mesmo ainda não acontece com a incitação ao ódio", diz.

Um desses sites radicados em portais americanos até já ensina os seus leitores como obter as atualizações da página mesmo que os provedores de acesso brasileiros decidam bloqueá-lo. Para isso, o leitor deveria, segundo eles, mudar a configuração de seu computador para usar um servidor "proxy". Em meio a diversas demonstrações de ódio aos judeus, eles até indicam uma série de servidores desse tipo que podem ser utilizados. Além de fugir do bloqueio, o método de acesso impede a identificação do computador pelo IP. Por isso, a estratégia favorece outros tipos de delitos, como os consumidores de pornografia infantil.

O procurador da República Sérgio Suiama lembra que a legislação brasileira sobre o assunto é parecida com a da Europa. "Isso não pode ser comparado com casos de censura na Internet, como o que acontece na China. A legislação que está na contramão é a dos Estados Unidos e não a nossa", afirma. Para ele, o caso brasileiro não fere as leis americanas porque são sites feitos a partir do Brasil e direcionados ao público de nosso país. "Além disso, é um crime previsto no nosso tratado com eles, de protocolos internacionais e de documentos da Organização das Nações Unidas", explica.

Um dos sites que usa esse expediente divulga os livros do editor neonazista Siegfried Ellwanger, que nega o extermínio de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e publica outros livros com ofensas aos judeus. O site que divulga os livros da Editora Revisão tenta isentar Ellwanger de qualquer responsabilidade sobre o conteúdo na internet.

Em 2005, a Conib (Confederação Israelita Brasileira) depositou o valor correspondente a um livro e o recebeu pelo correio, para comprovar a ligação do site com Ellwanger. A entrega do livro foi usada como prova em um pedido feito pela entidade para a instauração de um novo inquérito criminal contra o editor. Ele é apontado como um dos principais divulgadores brasileiros do discurso anti-semita.

A primeira condenação de Ellwanger por causa de seus livros foi em 1993, em São Paulo, pelos crimes de difamação e injúria. A decisão, em primeira instância, proibiu a circulação dos livros do editor em todo o território nacional. Dois anos depois, ele foi absolvido na Justiça do Rio Grande do Sul sob o argumento de defesa da "liberdade de expressão". A sentença acabaria reformada no ano seguinte. Ellwanger foi condenado a dois anos de prisão transformados depois em quatro anos de prestação de serviços à comunidade. Esta é a decisão que foi confirmada posteriormente pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) e pelo STF. Em 1996, foi denunciado por divulgar seus livros anti-semitas na Feira do Livro de Porto Alegre, o que resultou em mais uma condenação.

O Supremo Tribunal Federal confirmou, por oito votos a três, em setembro de 2003, a condenação do editor a dois anos de reclusão por crime de racismo. O defensor do neonazista tentou mudar a tipificação criminal da condenação de racismo para práticas discriminatórias. O argumento era de que os judeus não podiam ser considerados uma raça e, portanto, não seriam vítimas de racismo. Das práticas discriminatórias, apenas o racismo não tem prescrição criminal.

Subcultura marginal

De acordo com a tese de doutorado da antropóloga Márcia Regina da Costa, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), depois transformada no livro Os Carecas do Subúrbio - Caminhos de um Nomadismo Moderno (Editora Vozes), alguns trabalhos realizados na Europa analisando as raízes e origens da violência em esportes, como o futebol, apontam a atração que ele exerce sobre determinados setores marginalizados da população. Na Bélgica, por exemplo, grupos de jovens torcedores violentos começaram a aparecer no início da década de 1970 com a subcultura juvenil urbana, marginal e delinqüente. Em alguns casos, muitos de seus membros eram ou tinham sido skinheads.

No Brasil, determinada parcela de jovens se identificou com os skinheads e, depois, derivou para os carecas do subúrbio. De acordo com o estudo de Márcia Regina, esse movimento foi "longo, tortuoso e passou pelos punks". As primeiras notícias surgiram por aqui em 1977 e traduziam a ideologia punk de dois modos. "De um lado, a violência, o descrédito aos valores democráticos, as vinculações com a extrema-direita, e, de outro, a incorporação do punk pelo sistema", escreveu Márcia. Essa incorporação se refere à aceitação da música e da roupa como um novo modismo - embora a gênese da música punk tivesse a ver diretamente com os problemas sociais ingleses e protestasse contra a recessão econômica. Aqui, o movimento chegou meio descaracterizado, unindo várias tendências, mas todas ligadas pela marginalidade social e pela revolta contra as condições de vida.

Em 1982, algumas gangues de punks que circulavam nos subúrbios distantes da zona leste assumiram o nome de Carecas do Subúrbio. Eram jovens que raspavam a cabeça e cultuavam o físico. Logo surgiram grupos semelhantes nas cidades da região metropolitana, que ganharam a denominação de carecas do ABC - mais tarde também aparecem os Carecas do Rio, baseados no Rio de Janeiro. Os carecas se opunham aos punks por considerar que eles se aburguesaram e eram "drogados e bêbados". Os punks por sua vez chamavam os carecas de violentos, trogloditas e vândalos. Os carecas eram jovens pobres, proletarizados, trabalhavam para sobreviver, organizavam-se em gangues e se auto-afirmavam por meio da violência. "Ao mesmo tempo, expressavam vários dos valores típicos dos trabalhadores de um modo geral, como a busca da dignidade no trabalho, o respeito, o reconhecimento social, além de assumirem, freqüentemente, posturas moralistas e nacionalistas", afirmou Márcia em seu estudo.

Os carecas brasileiros se inspiraram e adaptaram o estilo skin europeu. Aqui eles também são nacionalistas, de direita, não raro neonazistas e não gostam preferencialmente de judeus e homossexuais. Há uma grande confusão sobre o sentimento por negros e nordestinos. Alguns carecas acham que não dá para ser racista no Brasil em razão da imensa mistura de raças. Mas há grupos de skinheads que picham muros de rádios e casas tradicionalmente ligadas à cultura nordestina com palavras de ordem racista. "O que ocorre com esses grupos é que os integrantes não têm nenhum lastro cultural para entender a própria ideologia", opina Eduardo Piza Mello, também do IEN. "No meio dos assassinos do Edson Neris havia negro, mulato e nordestino." Mello ressalta que onde há homofobia há pessoas com problemas pessoais e sexuais não resolvidos.

Ciência Criminal
http://cienciacriminal.uol.com.br/textos.asp?codigo=205

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