quinta-feira, 22 de março de 2007

Morre o sociólogo francês Jean Baudrillard

Folha de SP, 07.03.2007

Morre o sociólogo francês Baudrillard

Um dos principais críticos da sociedade de consumo, o pensador nascido em Reims tinha 77 anos e vivia em ParisAutor de "A Sociedade de Consumo" e "O Sistema dos Objetos", acadêmico via Guerra do Iraque como um "não-acontecimento" LENEIDE DUARTE-PLONCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS O sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard morreu ontem, em sua casa, em Paris, aos 77 anos, depois de uma "longa doença" -essa expressão é comumente usada pela imprensa da França para se referir ao câncer.Conhecido mundialmente por sua abordagem ácida da mídia e da sociedade de consumo -cuja insignificância ele denunciava, ao mesmo tempo em que profetizava seu declínio-, Baudrillard foi um intelectual intempestivo e autor de cerca de 50 livros, além de fotógrafo renomado. Ora tachado de reacionário moralista, ora de niilista, ele se considerava um resistente e criticava a suposta covardia intelectual de seus contemporâneos.Nascido em Reims, em 20 de julho de 1929, numa família de origem camponesa, Baudrillard era germanista e tradutor de Marx e Brecht. Em 1968, lançou seu primeiro livro de sociologia, "O Sistema dos Objetos", sucedido por "A Sociedade de Consumo", em 1970. Três anos depois, ao assinar "O Espelho da Produção", rompeu com o marxismo.A partir daí, tornou difícil o trabalho daqueles que buscavam associá-lo a quaisquer ideologias. Baudrillard se via como um franco-atirador, que desagrava a direita e a esquerda. Esta última, aliás, o encarava com ressalvas desde que revalorizara o pensamento do filósofo conservador Joseph de Maistre no livro "A Transparência do Mal", de 1990.Em 1986, ao regressar dos Estados Unidos e escrever "América", já levantara "suspeitas" por trechos como: "Os Estados Unidos são a versão original da modernidade, nós somos a versão dublada e com legendas. Os Estados Unidos são a utopia realizada".Tido como um dos principais teóricos do pós-modernismo, ele voltou seu alvo para a crítica do pensamento científico tradicional e desenvolveu seus estudos a partir do conceito de virtualidade do mundo aparente, lançando o termo "desaparecimento da realidade".11 de SetembroQuando os terroristas atacaram o World Trade Center, em 2001, Baudrillard fez conferências e escreveu artigos sobre o tema. Em 2003, durante uma de suas passagens pelo Brasil, disse à Folha que "a guerra [do Iraque] é o não-acontecimento, algo que foi feito para eliminar o primeiro [os atentados]". À época, descreveu o terrorismo como "agente e metáfora da desintegração interna de uma superpotência mundial sem inimigos visíveis no front de combate".O filósofo que começou sua carreira como professor de sociologia da Universidade de Nanterre se anunciava provocador desde os primeiros ensaios: "O que escreverei terá cada vez menos chance de ser compreendido. Mas isso é meu problema. Estou numa lógica de desafio".Segundo ele, o terrorismo também seguia a sua própria lógica. Em fevereiro de 2003, ao discutir a iminente "guerra ao terror" comandada pelos EUA, em um encontro com o também filósofo Jacques Derrida, em Paris, ele observou: "A guerra acontecer ou não é um detalhe, já que ela é um acontecimento fantoche que só existe como efeito de substituição. Os americanos substituíram Bin Laden por um objetivo fantoche. Bin Laden não morreu, desapareceu", afirmou."Ao contrário do 11 de Setembro, a guerra contra o Iraque foi de tal forma pensada e discutida que, quando ela acontecer, não haverá mais a necessidade de acontecer", concluiu.A última obra publicada por Baudrillard foi "Cool Memories 5", quinto volume de suas memórias. O livro saiu em 2005, encerrando a série iniciada em 1987.

REPERCUSSÃO
CANDIDO MENDES, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz: "Deixei-o ainda há 15 dias em Paris numa absoluta lucidez -que ele manteve até o fim. Foi esse exercício de consciência e lucidez que ele deu a todos os amigos neste último ano. É, sem dúvida, um dos grandes mestres da pós-modernidade, unindo o trabalho de filósofo e de sociólogo. Foi notável sua influência ao pensar sobre como caímos no mundo do virtual, um mundo do massacre midiático. Esse é o grande problema do mundo que aí está. Pensamos aquilo que as imagens permitem, o que a produção virtual autoriza."
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português:"Baudrillard foi um grande sociólogo, uma das pessoas que com mais argúcia analisou a sociedade capitalista contemporânea. Toda a sua análise dos simulacros, da sociedade do espetáculo é já um patrimônio da sociologia." TEIXEIRA COELHO, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo: "Baudrillard teve uma primeira fase perfeitamente acadêmica, para em seguida se tornar um provocador público. Ele se notabilizou por discutir a quente questões de extrema atualidade, e tinha "insights" perfeitos -mesmo que depois tivesse dificuldade para desenvolvê-los e defendê-los. Acho importante esse papel corajoso de provocador. Algo bastante diferente do que se vê no cenário brasileiro, em que os intelectuais parecem só ter bons sentimentos e nunca se mostrarem dispostos a provocar."
IVANA BENTES, professora da Escola de Comunicação da UFRJ:"Baudrillard foi um dos grandes cronistas do século 20 -muito midiático, tinha essa qualidade como uma característica ao mesmo tempo boa e duvidosa de seu pensamento. Sempre escrevendo sobre o que tinha acabado de acontecer. Sempre conseguiu responder de forma muito rápida ao que acontecia, mas sempre também desde um ponto de vista catastrófico. É um pessimismo bastante sedutor, que ao mesmo tempo cria uma certa impotência. Esse fatalismo de uma sociedade das simulações, em que tudo é falso."

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