domingo, 18 de novembro de 2007

Sobre a Caxemira

IN GOD WE TRUST

José Arbex Jr.

Por trás da ameaça de um conflito bélico entre Índia e Paquistão há interesses que vão muito além da questão religiosa.A “questão religiosa” opõe Índia (de maioria hindu) e Paquistão (de maioria islâmica) na disputa pela Caxemira; o “fanatismo religioso”, mais uma vez, conduz a humanidade ao desastre – afirma o “especialista”, com ares de douta seriedade. Ele não diz, mas deixa transparecer: “religiões exóticas” produzem desastres; sorte nossa sermos cristãos “ocidentais”. Só que está tudo errado. Apenas aparentemente existe uma “disputa religiosa” pela Caxemira. As “elites” da Índia e do Paquistão disputam, hoje, a parte a que julgam ter direito no butim de uma Ásia Central controlada majoritariamente pelos Estados Unidos, tendo como “sócios menores” a Rússia e a China. Como farão as potências para “controlar” a Ásia Central? Simples: a receita foi generosamente dada pelo presidente Vladimir Putin, durante o encontro mantido com George Bush júnior, no final de maio, na Rússia: o ataque dos Estados Unidos ao “terrorismo” no Afeganistão estabeleceu o modelo que a Rússia deve adotar para combater os “terroristas” da Tchetchênia. Simples assim. O conflito entre Índia e Paquistão é apenas uma faceta desse quadro. E os testes com mísseis feitos pelo Paquistão, também no final de maio, mostrando sua capacidade de atingir as maiores cidades da Índia, evidenciam a possibilidade de um conflito que ameaça produzir uma “guerra nuclear regional”. A demência atinge um limite perigoso para a humanidade inteira.Traceca, o nome do jogoO verdadeiro nome do jogo na Ásia Central é “Traceca”, composto com as iniciais, em inglês, de Corredor de Transporte Europa-Cáucaso-Ásia Central. Trata-se da “nova Rota da Seda” (o famoso caminho percorrido por Marco Pólo), um complexo rodoferroviário destinado a ligar a Europa mediterrânea até a China, passando pelo norte do Afeganistão, Ásia Central e Turquia. A construção desse imenso complexo – com fundos da União Européia (UE) e do Banco para o Desenvolvimento da Ásia (BDA) – será combinada com a instalação de oleodutos que vão abastecer o mercado ocidental (mais informações: www.traceca.org e www.igc-traceca.org).Alguns números ajudam a ilustrar o que está em jogo. Apenas os cinco países da bacia do Cáspio – Azerbaijão, Casaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão – possuem reservas estimadas em 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás. Três deles – Azerbaijão, Casaquistão e Turcomenistão – contêm mais petróleo e gás do que o Golfo Pérsico. As cinco maiores empresas petrolíferas dos Estados Unidos (Chevron, Conoco, Texaco, Mobil Oil e Unocal) concluíram ou estão concluindo uma série de acordos bilionários com esses países (exceto o Irã) para explorar suas reservas. O Traceca, obviamente, será um componente fundamental de estruturação da economia da Eurásia no século 21, como eixo de transporte do petróleo ou corredor de trocas comerciais. O traçado da nova Rota da Seda já começou a ser discutido, por várias conferências, realizadas a partir de março do ano 2000, sempre em algum país do Cáucaso (Geórgia, Armênia e Azerbaijão), envolvendo delegações de trinta países da Europa e da Ásia. Em termos geoestratégicos, o Afeganistão está destinado a ocupar um lugar central nessa economia – e é isso que explica o interesse dos Estados Unidos pelo país –, como região de passagem e contato entre o extremo asiático, o Oriente Médio e a Europa.O traçado da futura rota também ajuda a explicar os conflitos entre Índia e Paquistão: a Caxemira pode se tornar um dos pontos de passagem obrigatória da estrada, o que mostra o seu imenso valor estratégico. Trata-se, portanto, de uma questão de natureza geoeconômica e estratégica, sem qualquer relação com “questões religiosas”. Outra coisa é a retórica adotada pelas “elites” dos dois países, com a conivência (por cumplicidade, má-fé ou ignorância) da mídia internacional.As várias CaxemirasOs limites da área genericamente conhecida como Caxemira, de 220.000 quilômetros quadrados (equivalente ao Estado de São Paulo) e 10 milhões de habitantes, são imprecisos, como resultado da história de sua formação histórica e geográfica (ponto de encontro entre muçulmanos, indianos e chineses), nota o professor de geografia e geopolítica Nelson Bacic Olic, que produziu um detalhado estudo sobre o assunto (ainda não disponível ao público). Atualmente, a região está dividida entre Índia, Paquistão e China. Dizer que a população é integrada por islâmicos e hindus e achar que, com isso, já se disse tudo o que interessa sobre os seus habitantes – como fazem, em geral, os “especialistas” divulgados pela mídia – é produzir uma simplificação caricatural, atroz e grosseira. A população da Caxemira, de fato, é formada por um conjunto muito heterogêneo de realidades políticas, étnicas, religiosas e lingüísticas, lembra Olic.A Caxemira “indiana” corresponde ao Estado de Jamu-Caxemira e abarca, praticamente, a metade de toda a Caxemira, onde vivem 6,5 milhões de habitantes. É o único Estado da Índia que abriga uma maioria (85 por cento) de muçulmanos, e é palco, desde o final da década de 1980, de movimentos separatistas. Ainda assim, não se trata de uma região culturalmente homogênea: no vale do rio Jelum (núcleo histórico da Caxemira, onde se localiza a capital, Srinagar) vivem 3 milhões de pessoas, das quais 90 por cento professam o rito sunita; ao sul, vizinha ao Estado indiano do Punjab, fica Jamu, onde também vivem 3 milhões, das quais 70 por cento são hindus; finalmente, na região de Ladakh vivem 150.000, a maioria de cultura tibetana e religião budista.A Caxemira “paquistanesa”, 78.000 quilômetros quadrados (um terço da área total), é habitada por quase 3,5 milhões de pessoas e compreende duas regiões distintas. A primeira, os Territórios do Norte (Gilgit e Baltistão), é administrada diretamente pelo governo federal; ali vivem cerca de 600.000 pessoas, a maioria formada por muçulmanos xiitas. Na segunda área (13.000 quilômetros quadrados), Azad Cashemir (ou Caxemira Livre), vivem outras 3 milhões de pessoas, em sua maior parte muçulmanos xiitas. Ela tem uma condição político-administrativa muito peculiar: dispõe de uma constituição e parlamento próprios, é dirigida por um primeiro-ministro e se beneficia de uma autonomia relativa em relação aos poderes legislativo, executivo e judiciário. Todavia, os aspectos ligados à defesa, relações exteriores e finanças são de responsabilidade exclusiva do governo do Paquistão.Por fim, a Caxemira “chinesa”, com 40.000 quilômetros quadrados (um quinto da área total) e alguns milhares de habitantes, corresponde quase que totalmente à área conhecida como Aksai-chin, ligada à região autônoma do Tibete chinês, e é historicamente ligada à influência tibetana. Uma parte dessa região foi conquistada pela China à Índia em 1962.Verniz religiosoPara a Índia, “Caxemira” significa a totalidade dos territórios, incluindo aqueles sobre o controle do Paquistão e da China. A suposta “base histórica” para a reivindicação da Índia é dada pelo fato de que, no século 19, houve uma administração central, exercida pelo marajá da Caxemira, de uma unidade integrada por territórios adquiridos por herança (Jamu), compra (vale do Jelum) e conquista militar (Ladakh e Baltistão). Já o Paquistão reivindica apenas uma parte do Jamu-Caxemira indiano, considerando que as porções orientais da região – o Ladakh e o Aksai-chin – não fazem parte da verdadeira Caxemira. Suas alegações são de ordens culturais e religiosas: tentam estabelecer uma ligação direta entre uma suposta identidade nacional caxemiriana e a religião muçulmana. Mas aquilo que nem a Índia nem o Paquistão fazem muita questão de explicitar é o que motiva, de fato, a disputa: o eventual controle do Paquistão sobre os territórios que ele reivindica como “seus” atribuiria ao país um excepcional poder de controle geoestratégico. Em primeiro lugar, abriria uma nova via de acesso à China, sua tradicional aliada contra a Índia e (talvez em menor escala) contra a Rússia, países com os quais Pequim disputa o controle sobre aquela parte da Ásia (basta lembrar a situação de permanente tensão, e eventualmente de conflito armado, entre as três potências ao longo da Guerra Fria). Segundo, permitiria ao Paquistão controlar amplos espaços drenados por todos os grandes rios que atravessam seu território, inclusive todo o médio vale do rio Indo, de importância vital para o Traceca.Acordo Putin-Bush?São também os interesses geoestratégicos que ex-plicam, entre outras coisas, o olho da Rússia na Tchetchênia e o entusiasmo de Putin pelos “métodos” de Bush júnior no Afeganistão. A Tchetchênia está “sentada” sobre um dos oleodutos-chave que ligam a Rússia a um porto do mar Negro, passando pelo Bósforo, na Turquia, e chegando ao mar Mediterrâneo.Aparentemente, houve uma “troca de favores” entre Rússia e Estados Unidos: os porta-vozes de Tio Sam abandonam as denúncias da “velha vontade imperialista russa” de dominar as fontes e as linhas de abastecimento de petróleo e gás iranianos e da bacia do mar Cáspio, silenciando sobre o massacre do povo tchetchênio; em troca, Moscou apóia a “luta contra o terrorismo” no Afeganistão, e ambos tentam “neutralizar” a China – o que exige a “administração” do conflito entre Paquistão e Índia.Como se vê, a religião serve, no máximo, como pano de fundo. A menos, é claro, que por “religião” se entenda a inscrição “In God we Trust”, convenientemente aplicada ao dólar americano.
José Arbex Jr. é jornalista.

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